sexta-feira, 23 de maio de 2008


Sempre que o trem passa pela manhã, em frente à Igreja Navegantes, e eu lembro de olhar para ela, ele está lá. É um cara magro, um pouco alto, de mochila. Apreendo uma imagem boa durante o quase um segundo em que o posso ver lá, parado. Diante da porta fechada da igreja, ele fica com a cabeça meio abaixada, em oração eu suponho. Não sei o que faz com as mãos, mas gosto de imaginar que ele as une em frente ao corpo, sem entrelaçar os dedos, apenas apoiando levemente uma sobre a outra. Acho mais suave assim. E de acordo com o o sentimento gerado pela imagem formada em minha cabeça.
Mas, sabe? O que me chama mais a atenção é isso de ele estar diante de uma igreja de portas fechadas. Não como se ela o negasse, mas apenas lhe fosse indiferente. Ou melhor, como se ele não precisasse estar dentro de uma construção que lhe é indiferente. Necessitando apenas estar ali, no começo de um dia a mais, e gozar uma presença sugerida pelo fato de estar diante da coisa enorme, que na verdade é um vislumbramento do motivo pelo qual se reza. Pelo qual as pessoas rezam.
E esse ato, por si, é irremediavelmente solitário.
Uma vez eu li, acho que foi na Clarice - para variar - algo a respeito de a oração ser o momento de maior acesso a nós mesmos. E que, quando rezamos, acessamos um interior infinito e real, que é nós. Como disse, não sei mais onde li e, portanto, não posso transcrever com fidelidade. Mas a idéia, e isso me lembro bem, é que fez um sentido completo para mim no momento em que li. O que também prova o agnóstico de araque que sou.
Na verdade, o que sobra disso tudo, para além do meu posicionamento religioso, é o fato de eu entender que assim, através do ato de se rezar para o algo em que se acredita, as pessoas têm acesso a um certo deus-elas-mesmas. E que conduz, por sua vez, a um valiosíssimo contato com o que há de mais verdadeiro e subjacente a cada uma dessas coisinhas seres humanos que somos. Tudo isso, é claro, na hipótese de um ato de oração sincero, individual e absolutamente privado, como só a mente nos pode ser.
Mas no caso de, em tudo isso eu estiver totalmente equivocado, o pior que pode me acontecer é eu ter começado um dia com o olhar mais poético. Nada mal.


Imagem: A la porte du garage - Vincent Teuliére

Um comentário:

Alemoa Nicole disse...

Pois adorei...
Quanto ao olhar poético vc tem ele sempre junto consigo... Ao olharmos assim enxergamos tudo mais bonito, e o mundo se torna mais bonito, e onde só há coisas feias conseguimos enxergar a beleza... O que falta neste mundo, que anda tão frio, são pessoas com este olhar, que amem e a cada dia se surpreendam e se deixem tocar com as coisas mais simples, mas simplicidade que desperta nossos pensamentos, sentimentos e curiosidades... para que estes nos guiem para um mundo mais bonito e mais humano...
beijocas...