sexta-feira, 26 de outubro de 2007

este dia, por exemplo, é hoje
e não amanheceu neste planeta
do que vem dele e em mim passeia
sinto, às vezes, água que gira a roda
às vezes, vento que me encobre parte de areia
desta vida sem arte
me falta a sorte
da luz quando me incide negra
e dilata-me os olhos para além da face
e eles pousam de volta ao solo
choro
como se fosse em Marte

sábado, 20 de outubro de 2007

Sobre as atividades humanas e a primeira conclusão metafísica: No mundo existem coisas.


"Quem a mim me nomeia o mundo? Estar aqui no existir da Terra, nascer, decifrar-se, aprender a deles adequada linguagem, estar bem

não estou bem, Ehud

ninguém está bem, estamos todos morrendo

Antes havia ilusões não havia? Morávamos nas ilusões. Ehud, e se eu costurasse máscaras de seda, ajustadas, elegantes, por exemplo, se eu estivesse serena sairia com a máscara da serenidade, leve, pequenas pinceladas, um meio sorriso, todos os que estivessem serenos usariam a mesma máscara, máscaras de ódio, de não disponibilidades, máscaras de luto, máscaras de não pacto, não seria preciso perguntar, vai bem como vai etc., tudo estaria na cara

Não pactuo com as gentes, com o mundo, não há um sol de ouro lá fora, procuro a caminhada sem fim, te procuro (...), a viva compreensão da vida é segurar o coração. me faz um café".
Hilda Hilst (Trecho de A Obscena Senhora D)
obs. minha: Não sou tão desatento quanto parece, a pontuação e os espaços são assim mesmo

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Acidentes [4(de4)]


A segunda história é também a última (quem não suspeitava?...), porque a que eu tinha preparado para ser a terceira já me entediou e o segundo final do que foi a primeira quase vale por mais uma. Não?
Assim, a última história é a do homem na Espanha que comprou uma casa de praia em um leilão de coisas cujos donos as perderam porque pararam de pagar as prestações. Ao visitar o novo imóvel pela primeira vez, ele encontrou a antiga dona da casa no sofá da sala, mumificada pela maresia, sentada há seis anos, quando pagou uma prestação pela última vez e começou a ficar endividada com a financiadora. Esta senhora que nunca tinha sido exatamente vívida pelo menos tinha antes alguma atividade e um certo teor de água em sua constituição física. Seis anos atrás, porém, ela parou totalmente de se mover e oficializou sua não-existência. Depois, contou-se também, que ela tivera irmãos e filhos que viviam em Madrid, de amigos nunca se ouviu falar e a polícia jamais registrou um relato de desaparecimento seu.

Eu, que além de coisas, gosto de pensar em não-coisas, imagino se é verdadeiro pensar que esta senhora desapareceu do mundo. Ou melhor, talvez sua morte seja de um período muito anterior ao de seis anos atrás. Quando é que ela deixou de existir? Quando foi seu último "aparecimento"? Tivesse eu alguma autoridade na Espanha e determinaria, a respeito da morte ou desaparecimento dessa mulher o seguinte: que em vez de se fazer uma certidão de óbito baseado na análise físico-química de um pedaço de múmia que se procure a pessoa que relate a mais recente lembrança provocada por sua presença e se registre nesta data seu falecimento, caso não se encontre tal relato, que seja anulada sua certidão de nascimento.


PS: Ironicamente, e talvez para me pôr na insegurança de quem pressente pensar errado, dou-me agora conta de que, como um faraó que que viveria eternidade afora, pelo próprio tempo ela foi mumificada...



Imagem: Simão Pereira de Magalhães - A Porta

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Onde, agora e só

Vem para o agora
e volta sofregamente as mãos
estranhamente o tronco
num retrocesso de vídeo ao revés
ao inverso
ao invés disso
como um lápis que descai
como rosto que desri
como gato que salta de costas do chão para o ar
põe-se de pé tu e teu hálito, chiclete de menta
de volta ao agora: antes - só onde te vejo
onde só eu fiquei preso, abandonado e solto
me perdi no ex-agora
agora e onde sempre se esvaem
só é fixo; tão fixo, tão sólido
que num só absoluto nem sou
não-coisa, anti-ocorrência
sou coisa sem agora, número um
e nem palavra há de mim.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Acidentes (3)

O outro final, para mesma história tem a particularidade de se encaixar numa possibilidade do real. É assim:
A moça entra em casa, a situação emocional em que todos são colocados ao vê-la é indescritível. Não é apenas como seria o caso de descobrirem antes do velório o engano. A estranheza inicial de estarem em presença, ao mesmo tempo, de seu corpo inerte e dela mesma coloca-os numa confusão mental de quem experimenta uma intervenção do fantástico no real, uma concretização do absurdo. Em seguida, evidentemente, o engano é desfeito e assim que todos recuperam seu apoio no mundo como ele sempre foi, generaliza-se entre os presentes o alívio e a euforia, especialmente para sua mãe. A velha mulher que achava o suicídio pouco cristão renovou suas esperanças no espírito da filha, que ela tinha percebido sempre um pouco desencontrada e capaz de não amar a si própria o suficiente ou não temer mesmo, suficientemente, a ira divina. E isso mesmo é o germe do que muda o olhar da moça após o acontecido. Após a própria morte prematura, permanecer entre os seus e conhecer os juízos que fariam a seu respeito dentro da possibilidade de sua ausência. De pronto acreditaram que o corpo suicida nas pedras era ela? Ela avisou que sairia de casa naquela noite e passaria fora um bom tempo. Acharam que a despedida significava mais que o explícito: que ela sairia de casa naquela noite? Por quê? O que ela havia sido até então que a tornara uma potencial suicida para quem a conhecia? No cadáver estranho e um pouco desfigurado que ela tinha encontrado na sala ao chegar e sobre o qual choviam olhares consternados, de fato, era possível imaginar muitas feições iguais às suas. Mas também era possível não imaginar. O que os fez reagir do primeiro modo? Qual a distância entre o que se tenta ser e o que isso representa para as pessoas para quem se tenta ser? "É que tem coisas que pensam da gente, que machucam". Foi a frase que ela mais repetiu para si mesma, na sua aflição de espírito emocionalmente honesto, tentando justificar seu inesperado desapontamento em contraste com a inédita alegria que ela mesma causou.